Linguagem e melancolia em “A dama de branco”, de Sérgio Sant’Anna: convergência de artes contra a violência da morte
Lélia Parreira Duarte
Só a morte me permite apanhar aquilo que eu quero
alcançar; só ela atribui sentido às palavras.
(BLANCHOT, 1983, p. 29).
Sérgio Sant’Anna, grande escritor brasileiro (1942-2020), autor fecundo de uma grande obra, foi vitimado pela Covid-19, aos 78 anos, em 10 de maio p.p., depois de publicar, apenas oito dias antes, o conto “A dama de branco”, na revista Época. Essa obra prima pode-se certamente incluir numa literatura que trata da violência e parece constituir-se como um grande exemplo do que Ettore Finazzi-Agró fala sobre a mais fina literatura: reflexão sobre o nexo entre morte e linguagem, (…) desejo herético de dar consistência e visibilidade àquela junção, àquele grama, àquela cópula extrema, juntando, no traço, a existência e o seu contrário. (FINAZZI-AGRÓ, 2006. p. 120).
A obra de Sérgio Sant’Anna, traduzida para diversas línguas 1 , inclui poesia, peças de teatro, novelas e romances, além de cinquenta contos e dois romances-teatro: Um romance de geração e A tragédia brasileira, parece impulsionada por essa “ânsia de representar aquele irrepresentável que se esconde e, ao mesmo tempo se revela no fundo da fala” (Finazzi-Agró, 2006, p. 120).
Os textos de Sant’Anna, autor que recebeu, entre vários prêmios, o “Portugal Telecom Conto ou Crônica” e três prêmios Jabuti, sendo um de livro brasileiro publicado no exterior, são importantes pela reflexão metalinguística e pela experimentação à violência; foram sempre marcados por sutil humor, elegância narrativa e domínio da construção de personagens e do texto em geral, constituindo-se, às vezes, de contos delicados, com paixão platônica e amores românticos.
Diversos críticos destacaram a proximidade de sua literatura com outras artes, bem como a capacidade do autor de recriar o sabor e a atmosfera do Rio de Janeiro, geralmente numa melancolia quase patética que não recusa o rótulo de auto-ficção, com abertura para mentir e inventar.
Como diz o jornalista e crítico literário Sérgio Rodrigues, a vasta obra de Sérgio Sant’Anna é marcada por constantes “inquietude e experimentalismo”, “Sempre com viés para o esquisito, o transgressivo”, realizada com “o bicho- carpinteiro da insatisfação formal”, com “seriedade monástica diante da literatura”, numa “carreira de mais de 50 anos de produção sólida”. Sérgio Rodrigues conta que: “Duas semanas antes de morrer, feliz por ter concluído uma novela, o escritor lhe disse por e-mail: “Nestes tempos de beira de abismo, tenho pressa. E, curiosamente, estou muito ágil mentalmente”.” (Como se previsse mesmo a chegada da “dama de branco”…) (RODRIGUES, Folha de São Paulo, 14.05.20).
Segundo Alcir Pécora, provavelmente o maior crítico de Sérgio Sant’Anna, a força desse autor deriva de sua capacidade de observação e do controle dos registros de linguagem. “Acho que o Sérgio é o cara que melhor faz frases no Brasil”. Pécora afirma, ainda:
poucos dominam como Sant’Anna a técnica da écfrase, ou seja, a arte de
descrever uma forma ou imagem, real ou imaginária, cuja eficácia maior
está em dar ao leitor, como em presença, aquilo que é descrito (Ec= pra fora,
frasis= falar”). (PÉCORA, Folha de São Paulo, 06.09.2014)
“A dama de branco” é um grande exemplo dessa habilidade de Sant’Anna: são muito sugestivas as descrições da bela mulher que levitaria como uma sílfide 2 no estacionamento do edifício, onde a veria o narrador em suas insones madrugadas, movimentando-se com a leveza de uma impressionista pintura de Monet.
Outras artes, como a música, o teatro, a dança e o cinema também se fazem presentes no conto de Sant’Anna, configurando uma oportunidade de reflexão sobre a presença e a importância da melancolia e da indecidibilidade de sentido no processo de criação, não só desse texto, mas de sua arte em geral.
O contexto em que se coloca o narrador é o Rio de Janeiro, neste tempo de pandemia. Confinado, ele se apresenta como um voyeur, beneficiando-se da sacada de seu apto, para onde vai especificamente nas madrugadas: de início, para apreciar as estrelas; depois, para contemplar de longe a dama de branco, que aparece sempre às três da manhã, como um ser do ar, mítico e vaporoso, intocável. “Imagino ver as suas feições, reparar como é bonita. Uma beleza singular, que não consigo descrever”.
Essa descrição faz lembrar cantigas de amor medievais, onde se reverenciamdamas distantes e proibidas, como nesta cantiga de amor de D. Dinis, o rei português que viveu entre 1261-1325:
Cantiga de amor
Quer’ eu en maneira de proençal
fazer agora um cantar d’amor,
e querrei muit’ i loar mia senhor
a que prez nen fremosura non fal,
nen bondade, e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.
(D. Dinis, s/d, p. 201)
Essa completa fremosura, feita “comprida de ben por Deus”, é nobre, casada e proibida; assim, o cantar desse trovador, se lhe causa imenso prazer, fala de um amor impossível, que só lhe pode trazer sofrimento.
“A dama de branco” lembra ainda Camões, em cuja obra encontramos também esse prazer no sofrimento por amor:
Presença bela, angélica figura,
em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
gesto alegre, de rosas semeado,
entre as quais se está rindo a Fermosura.
olhos, onde tem feito tal mistura
em cristal branco o preto marchetado,
que vemos já no verde delicado
não esperança, mas enveja escura;
brandura, aviso e graça que, aumentando
a natural beleza cum desprezo
com que, mais desprezada, mais se aumenta;
são as prisões de um coração que, preso,
seu amor ao som dos ferros vai cantando,
como faz a sereia na tormenta.
(Camões, 1973, p. 134)
O poeta canta uma belíssima amada, cujo desprezo só aumenta a sua beleza e, estranhamente, também o paradoxal e doloroso prazer do Poeta de cantá-la, em sua prisão de amor.
Também o narrador de “A dama de branco” deseja a distante sílfide de que ele fala: “Todos estão dormindo e fico contente com isso, pois, com ninguém mais a contemplá-la, é como se a dama de branco me pertencesse exclusivamente”. Mas completa: “Penso nela como uma mulher pura que está em outra dimensão.”
Em outro momento imagina-a nua, com seu corpo esguio, na sua cama, o que lhe parece um sacrilégio… E faz lembrar novamente Camões, no seu classicismo amoroso, em que o amador deveria apenas adorar de longe a sua amada:
Pede o desejo, Dama, que vos veja,
não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja
que não queira perpétuo seu estado;
não quer logo o desejo o desejado,
porque não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana;
que, como a grave pedra tem por arte
o centro desejar da natureza,
assi o pensamento (pola parte
que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
(Camões, 1973, p. 120)
Mesmo ver a mulher amada/proibida seria um sacrilégio! Por isso o Poeta recrimina o seu desejo terrestre, mundano…
Também a dama do conto, em sua pureza, seria inatingível; apenas pensar em tocá-la já seria um crime… E o narrador descreve a circulação da dama de branco pelo estacionamento do edifício: sem máscara, com a leveza de uma bailarina. A imagem é tão viva, que nos faz visualizar mulheres etéreas, como a “Mulher com sombrinha”, de Monet, a qual me atrevi a tentar repetir aqui, tirando-lhe a sombrinha, mas acrescentando-lhe uma Perséfone, flor que tem o nome de uma personagem mitológica ambígua que simboliza ao mesmo tempo morte e vida…
Além da pintura, outras artes estariam presentes ou sugeridas no conto: dança, teatro e cinema, na construção do cenário e na movimentação e leveza dessa “dama de branco”. Já as “Gnossiennes” de Erik Satie que, antes de vir para a varanda, o narrador “escutava compulsivamente”, ajudam a compor o espaço e o clima, trazendo para o texto a sua música triste e o seu andamento fúnebre.
A notar que Satie, compositor e pianista francês, foi também artista plástico, além de pioneiro do cinema, talvez o primeiro a sincronizar música e imagem.
Também Satie sofreu uma desilusão amorosa que o levou a viver em confinamento (e isso parece ter alguma relação com o conto de Sant’Anna…)
Será interessante lembrar que, numa entrevista a Jonatan Silva, tenha afirmado o nosso autor: “(…) passeio por diversos gêneros e experimentações (…). É muito interessante e provocador escrever um romance misturado com teatro”. (SILVA, Jonatan, Rascunho)
Parece, portanto, evidente a presença – ou a sugestão – de várias artes em “A dama de branco”. Pintura, dança, teatro (com movimentação e fundo musical)…
Algo em processo, inconcluso, marcado pelo estranhamento, mas vivo e pulsante.
Sabemos que o autor publicou esse conto e morreu, em maio p.p., em pleno tempo de pandemia de Covid-19.
Embora negue, o narrador confessa pensar, “às vezes”, ser a dama de branco a própria morte. E explica: “Sei que isso é um modo de prendê-la e logo me penitencio e sei que em outro momento pensarei em outra
coisa. A morte não passa de uma obsessão minha”.
Afinal, pergunta-se: estaria o narrador identificando a “dama de branco” com a morte, ou não? O conto tem duas páginas, nas quais contam-se 26 não, com dois nem, certamente com o mesmo valor negativo. E sempre será importante lembrar: a repetição pode ser sinal de ironia… Repetição e ênfase podem significar o contrário! E também que esse narrador não parece confiável!
A notar a situação desse narrador: confinado pelo corona vírus, ele usa a sacada (que no texto seria uma abertura para o universo) como um estímulo para a sua reflexão sobre as consequências da pandemia (ar mais puro, mais estrelas visíveis, a necessidade do uso de máscaras, o espaço aberto para as caminhadas da dama solitária…); e elabora imaginariamente essa mulher esvoaçante e desejada, mas que seria pura, como aquela amada de Camões, classicamente proibida.
A sua “dama” estaria numa outra dimensão, o que o leva a falar de Deus, em quem diz não crer, propriamente, não deixando, entretanto, de usar para ele as “maiúsculas de praxe”. De Deus passa ao nada (que “também não o angustia”), diz ele. Fala depois do barato da droga e da mulher com quem a experimentava, lembrando talvez uma situação de estar e ao mesmo tempo não estar na realidade…
Mas logo volta à dama de branco, e imagina-a deitada com ele; aqui a dama já tem um corpo: quem sabe estará nua, com seu corpo esguio, solitária como ele; mas nem transariam (porque ele já tem 79 anos, como diz, ou porque ela é uma amada imaginada e proibida, apenas parece real?)
É então que o narrador cria para a dama de branco uma história de amor e morte (sempre amor e morte, agora numa história dentro da história): ela teria perdido uma amiga querida (e a morte parece então intensificar o processo imaginativo): essa amiga teria sido casada com um pianista, apagado da história por ciúmes do narrador (exibe-se assim a sua autoridade de elaborador da história): seria então ela a pianista, mudando logo para ele, narrador, que tocaria para a amada. Isso traz à lembrança as “Gnossiennes”, que Satie anotou deviam ser tocadas com convicção e uma tristeza rigorosa, que ele, narrador, diz ter e que provavelmente relacionaria com uma triste desilusão amorosa sofrida por Satie. E cita os títulos do compositor / pianista, os quais julga tão interessantes quanto as suas obras; lembra também o seu pioneirismo, só melhor compreendido no século XXI: “Três peças em forma de pera”, “Prelúdios flácidos”, “Desesperos agradáveis”.3
E continua com Satie a referência à música, imaginando a dama de branco a tocar as “Gnossiennes”, para ele, a seus pés. “Satie e eu amamos essa tristeza lírica”. E volta a questão: “E a dama de branco, será?” O leitor sente que talvez ele esteja voltando a falar de morte. Mas: “Não, penso mesmo que ela é etérea, a caminhar quase sem tocar o solo. Será que não pressente o meu olhar? Poderá ela me amar como eu a amo?”
E assim termina o conto: “Ah, mas como eu gostaria de deitar com a dama de branco numa cama, consumindo ópio. Como não tenho ópio, vai este baseado mesmo. Seria como se nos beijássemos, misturando nossas salivas em sua seda”, diz ele, numa aparente superposição de ficções.
O narrador nos desvela assim a melancolia que o domina (e é típica da música de Satie); e nos leva a entender: as referências usadas lembrariam morte, e também solidão, beleza, desejo, tristeza e amores impossíveis, mostrando simultaneamente o material com que constrói o seu texto e tornando evidente o seu processo de criação.
A questão da morte
Embora o narrador negue, ou até por isso mesmo (lembremos a ironia) parece que a questão da morte é muito importante no conto, o que faz lembrar um texto do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942), cujo título é “Ideia da morte”: Eis o texto:
Ideia da morte
O anjo da morte, que em certas lendas se chama Samael, e do qual se conta que o próprio Moisés teve de o afrontar, é a linguagem. O anjo anuncia-nos a morte – e que outra coisa faz a linguagem? – mas é precisamente este anúncio que torna a morte tão difícil para nós. Desde tempos imemoriais, desde que tem história, a humanidade luta com o anjo para lhe arrancar o segredo que ele se limita a anunciar. Mas das suas mãos pueris apenas se pode arrancar aquele anúncio que, assim como assim, ele nos viera trazer. O anjo não tem culpa
Parece que, como o anjo de que fala Agamben, também a dama de branco, tão amada pelo narrador, teria uma mensagem. Que ele não chega a receber, embora sentisse que essa figura vinha especialmente para ele, caminhando a céu aberto e levitando como uma sílfide, com o seu vestido esvoaçante, sempre às três da manhã.
No texto de Agamben o anjo anuncia a morte; no entanto, esse anjo nada diz. Talvez seja esse também o caso do conto, uma sucessão de pensamentos e reflexões, a pairar sobre a dama de branco, que talvez anunciasse a morte, sem, entretanto, entregar a sua mensagem. Isso nos leva a pensar que a impossibilidade de conhecer a mensagem do anjo – ou a “verdade” sobre a dama de branco – seriam tecidos por uma linguagem que embala, encanta, distrai, e assim faz literatura… com a indecidibilidade de sentido que causa prazer ao leitor. De que trata afinal o conto? De amor ou de morte? ou?… 4
No caso de “A dama de branco”, o narrador acentua estar sempre a imaginar (ou diz “que não consegue imaginar”), “sendo o seu discurso marcado por incertezas que nos lembram os 26 nãos encontrados no texto, ou expressões como:
quero crer, se houver, ora vejam só, como se, pelo menos é o que imagino neste momento, será ela uma bailarina? Como eu gostaria de estar entre eles (Satie e seus amigos dadaístas). Não, quero viver este momento mesmo. Quero ser eu próprio.
Mas quem sabe… E a dama de branco, será? Não, penso mesmo que ela é etérea… Será que não pressente o meu olhar? Poderá ela me amar como eu a amo?
Poderíamos casar, teria prazer em cozinhar para ela… Não, não, porque aí haveria os perigos inerentes ao hábito; gostaria de deitar com a dama de branco; seria como se nos beijássemos…”
São perguntas e dúvidas ou afirmações seguidas das respectivas negações, com verbos principalmente no futuro do pretérito (dormiria, gostaria, poderia, teria, haveria, seria…). Ou seja, trata-se de um discurso errante que dança no tempo, usando o futuro do passado, entretecendo elementos capazes de (co)mover o leitor,
e lhe podem assim trazer a desejada emoção de que fala o argentino Júlio Cortázar.
Já definida na situação inicial dessa pequena história, em que Sérgio Sant’Anna traz todo o horror de uma cidade vazia, ameaçada por um vírus tenebroso e invisível. Horror que seria suavemente disfarçado por essa sílfide que levita a céu aberto, com o seu vestido esvoaçante. Não lembraria ela o tremor de água dentro de
um cristal, de que fala Cortázar? (2006, p. 151)
Essa história da “dama de branco” lembra também o esquema do norte-americano Edgar Alan Poe para o conto, por sua escolha planejada e cuidadosa de situações, referências artísticas e perdas e emoções amorosas capazes de mover o leitor.
Parece relacionar-se também com os protocolos de que fala o argentino Ricardo Piglia: não estaria esse narrador levando-nos pela mão, prometendo um final surpreendente que nunca chegará? Segundo Piglia, “A arte de narrar é uma arte da duplicação; é a arte de pressentir o inesperado; de saber esperar o que vem,
nítido, invisível, como a silhueta de uma borboleta contra a tela vazia”. (PIGLIA, 2004, p. 114)
Duplicação e ambiguidade que parecem existir nesta “dama de branco” que fala de amor e de morte, aglutinando uma realidade muito mais vasta que o seu argumento e brevidade, no seu tecido de várias artes que embalam narrador e leitor.
Tecido que privilegia questões de textualidade e de leitura, ironizando-se a si mesmo e confessando-se artefato, elaboração, jogo, arte, para revelar consciência de seu caráter de linguagem, exibição do vazio e da falta que caracterizam o sujeito.
Penso que um outro texto de Giorgio Agamben poderia ajudar neste estudo de “A dama de branco”: trata-se de “Os fantasmas de Eros”, da primeira parte do livro Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura ocidental.
No prefácio do livro, Agamben parte da “stanza”, para tentar encontrar “uma topologia do gaudium – da “estância” –, através da qual o espírito humano responde à impossível tarefa de se apropriar daquilo que deve, de qualquer modo, continuar inapreensível.” (AGAMBEN, 2007, p. 14)
Agamben começa pelo “Demônio meridiano”, o pior flagelo, lembrando que a melancolia, ou bílis negra, é aquela cuja desordem pode provocar as consequências mais nefastas. Relacionada ao planeta Saturno, a melancolia seria responsável por temperamentos doentios e negativos. Na Idade Média, os Padres da
Igreja consideravam a melancolia (acedia, tristitia, taedium vitae, desidia) como o mais mortal dos vícios, o único para o qual não haveria perdão. Por isso mesmo era execrado esse “demônio meridiano”: elegia suas vítimas entre os homines religiosi e, num flagelo pior que a peste, abatia-se sobre as moradas da vida espiritual, penetrando nas celas e nos claustros dos mosteiros, nas tebaidas dos eremitas, nas abadias trapistas dos enclausurados.
Entretanto, a antiga tradição associava exatamente ao humor mais miserável o exercício da poesia, da filosofia e das artes, chegando Aristóteles a perguntar por que […]“todos os homens que foram excepcionais na filosofia, na vida pública, na poesia e nas artes são melancólicos, alguns a ponto de serem tomados pelas enfermidades oriundas da bílis negra?” (AGAMBEN, 2007, p. 34) E o filósofo conclui: num processo dialético, a doutrina do gênio se costura indissoluvelmente com a do humor melancólico, que responderia por uma propensão natural ao recolhimento interior e ao conhecimento contemplativo, sendo muitas vezes responsável pela criatividade e pelo exercício da poesia, da filosofia e das artes. É dialética a natureza desse “demônio meridiano”: assim como se pode dizer da doença mortal, que traz em si a possibilidade da própria cura, também da melancolia se pode afirmar que “a maior desgraça é nunca tê-la tido.”(p. 32)
Agamben acompanha a presença da melancolia em várias épocas, desde Heráclito e Demócrito, passando pelos poetas de amor no século XIII e observa o grande retorno da melancolia no Humanismo; a sua terceira idade seria no século XIX e “entre as vítimas” ele cita Nerval, De Quincey, Coleridge, Strindberg, Huysmans e Baudelaire (Agamben, 2007, p. 35); na perspectiva deste último, “a auto-dissolução é o preço que a obra de arte deve pagar à modernidade”. E é por isso que Baudelaire atribui ao poeta uma tarefa paradoxal: “Quem não sabe captar o intangível não é poeta”, diz ele num ensaio sobre Poe; e define a experiência da criação como um duelo de morte, “no qual o artista grita de pavor antes de ser vencido”. (Agamben, 2007, p. 76)
Esta, a melancolia…
E Agamben explica: “Na insistente vocação contemplativa do temperamento saturnino, continua vivo o Eros perverso do acidioso, que mantém o próprio desejo fixo no inacessível” (“Melencolia I”, AGAMBEN, 2007, p. 38): “A mesma tradição que associa o temperamento melancólico à poesia, à filosofia e à arte,
atribui-lhe uma exasperada inclinação para o Eros” (“Eros melancólico”, AGAMBEN, 2007, p. 39).
Agamben refere os estudos de Freud sobre a melancolia, cuja ambivalência o teria impressionado; pois, “(…) na melancolia, o objeto não é nem apropriado nem perdido, mas as duas coisas acontecem ao mesmo tempo”. (“O objeto perdido”, AGAMBEN, 2007, p. 46). Não seria exatamente o que acontece em “A dama de branco”?
Voltemos, entretanto, ao conto: por que buscar essa questão da melancolia, em Agamben, para estudar “A dama de branco”, de Sérgio Sant’Anna? A melancolia está certamente presente no conto através das referências e reflexões de um narrador solitário, imaginativo, insatisfeito, imbuído de um amor impossível e cercado de lembranças de artistas de vanguarda inovadores e muitas vezes incompreendidos; um narrador que dá um belo testemunho de um tempo de pandemia de corona vírus, com uma ameaça constante de morte, e vai emendando suposições e imaginações a propósito de uma figura misteriosa que ele ama, mas não se sabe o que significaria e mesmo se realmente existiria…
Impressionam, no conto, a presença real ou sugerida de artistas estranhos, inquietos, isolados, tardiamente reconhecidos no meio artístico, ou seriam, como Sérgio Sant’Anna, de difícil convivência, nas palavras de
Bernardo Esteves, em seu longo texto sobre o escritor, na revista Piauí no. 103, de abril de 2015. Fica evidente aí também a profunda relação do nosso autor com a linguagem e o seu impulso vital de trabalhá-la e manipulá-la, incansavelmente, numa visível melancolia. Sant’Anna foi muito marcado por essa dupla tendência: essa acídia, essa tristeza, essa melancolia, manifesta, entretanto, também por uma impressionante produção, não apenas no terreno do conto, mas em textos mais longos, e ainda em outras áreas artísticas.
Compreendem-se melhor, assim, as suas referências a Satie, com os seus amigos dadaístas (que produziram na época da primeira guerra mundial, mostrando com a sua arte o seu descontentamento e a sua rebeldia e causando escândalo, como os modernistas portugueses).5
E ainda os outros artistas sugeridos nas entrelinhas do texto, também situados na linha de vanguarda, em diferentes artes, no seu tempo: seja o coreógrafo norte-americano Bob Wilson, sejam os dadaístas ou, em especial, o artista francês Marcel Duchamp (1887-1968), talvez o maior ídolo intelectual de Sérgio Sant’Anna.
Algo muito especial une o nosso autor a todos esses artistas: um fazer avançado para o seu tempo, uma insatisfação, um inconformismo, um desejo de ser original e de ir contra o status quo: indissoluvelmente, duas coisas em uma: “é regime errante da letra órfã cuja legitimidade nenhum pai garante, mas é também a própria textura da lei, inscrição imutável do que a comunidade tem em comum”. (RANCIÈRE, 1995, p. 9)
Enfim, uma melancolia, uma doença que traz em si a própria cura e da qual se pode dizer: “a maior desgraça é nunca tê-la tido” (AGAMBEN, 2007, p. 32).
Justamente porque a alegria da criação é a resposta à impossível tarefa de se apropriar daquilo que deve, de qualquer modo, continuar inapreensível, aquele irrepresentável que se esconde e, ao mesmo tempo se revela no fundo da fala” (Finazzi-Agró, 2006, p. 120). Como a morte e como essa “Dama de branco”…
A conclusão seria, portanto, a meu ver: felizes somos nós, que temos esse amor pelas Letras e sabemos que a maior desgraça seria nunca ter tido o prazer de viver o sofrimento da literatura!… Pois já dizia Fernando Pessoa: “A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos.” (PESSOA, 2010, p. 480). E ainda: “Viver não é necessário, o que é necessário é criar” 6 .
1 Traduções de obras de Sérgio Sant’Anna foram publicadas nos seguintes países: Alemanha, Argentina, Chile, França, Israel, Itália, Macedônia, Portugal e República
Tcheca.
2Na mitologia grega, as sílfides eram espíritos muito belos, de pele branca e muito fina, altos e esbeltos, que além da tarefa de purificar o ar e movimentar as nuvens, podiam rodear a mente dos sonhadores, trazendo-lhes, às vezes, solução para algum problema.
3 Baudelaire parece falar sobre esse estranhamento, quando diz que “(…) o artista deveria procurar reproduzir na sua obra a destruição do valor de uso e da inteligibilidade tradicional, que estava na raiz da experiência do choc. Desta maneira, ele teria conseguido
4 Jacyntho Lins Brandão tem um interessante estudo sobre o romance de Tristão e Isolda, do século XII, em que reflete sobre o final de Isolda, onde se decide a sua eventual culpa: o seu juramento pode ser afinal entendido de duas formas. E é nessa indecidibilidade, conclui o crítico, que reside a grandeza da literatura, onde se pode falar de um amor que está além de qualquer coisa que se pode dizer sobre o amor, pois sempre haverá muitos
entenderes.
5 Erik Satie foi precursor de movimentos artísticos como minimalismo, música repetitiva e teatro do absurdo. E será interessante lembrar que, além de criar músicas de “tristeza rigorosa”, Satie também vivia confinado; somente saía com o mencionado terno negro para encontrar seus amigos dadaístas (sua biografia diz que ele tinha doze ternos exatamente iguais); quando morreu, encontraram em seu apartamento dois pianos
desafinados e amarrados com cordas, um deles empilhado sobre o outro (talvez os pianos não tenham tido muito uso mesmo quando estavam funcionais, pois Satie preferia compor à mesa do café).
6 “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: / Navegar é preciso; viver não é preciso;./ Quero para mim o espírito desta frase,/ transformada a forma para a casar com o que eu sou:/ Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. (PESSOA, 2007)
Referências:
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______. Estâncias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução Selvino
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BLANCHOT, Maurice. De Kafka a Kafka. Paris: Gallimard, 1981.
BRANDÃO, Jacyntho Lins. "Tristão e Isolda origens do romance moderno.
https://youtu.be/5qN1WE4p3Lc Acesso em 30.08.2020.
CAMÕES, Luís de. Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da
Costa Pimpão. Coimbra: Atlântida Editora, 1973.
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______. (Org.). De Orfeu e de Perséfone – morte e literatura. Cotia, São Paulo:
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